Um rotineiro acordar, apressado, cansado. Uma habitual manhã, trivial, desmotivante, estupidamente aborrecida. Mais uma tarde como todas as outras, o prolongamento da melancólica e arrastada manhã. Anoitece solitário, triste, sombrio. A noite agitada, ansiosa, preocupada. Um sonho acordado.
Como fora possível atingir aquele ponto? Até força para reflectir faltava. Sentia um vazio insuportável.
O rotineiro acordar: sete e quarenta e sete. “ Já?” O seu primeiro pensamento pela manhã. Segue-se o banho quente, que tudo compõe, excepto o instalado estado de espírito depressivo. Vestir algo que sai sempre terrivelmente mal conjugado. Passa ao café forte, amargo. Por vezes uma bolacha, uma maçã. Oito e um quarto. “A chave?” Enchutar o gato do sofá, revirar almofadas. “A chave?!” O bolso! Correr para a porta, procurar a chave correcta, deixar cair os papéis desorganizados e atrasados. Assistir ao gato surgir, pisar tudo. “ Chut! Chut!” Gato ridículo, nunca gostara dele. Gordo de mais, excessivamente preguiçoso, matreiro, infiel, interesseiro. Como se ver livre da prenda que a mãe lhe oferecera? "Para não te sentires tão sozinho!" Sem dúvida, um destino errante.
O pico alto da manhã, o momento mais radioso: chegar ao velho carro de quinze anos, branco e deslavado (até dinheiro para a pintura faltava), evitar olhar para o espelho inundado de fita adesiva amarela. Malditos putos! “Para a próxima quem lhes atira um pedregulho sou”…
— Ora muito bom dia!
Sim, mais um belo dia — pensa sarcasticamente.
— Olá! Adeus!
— O seu vidro está partido.
Todas as santas manhãs ouvir a Dona Amélia, da janela da sua velha casa, gritar algo desnecessariamente irritante.
— Acontece. — Um sorriso seco.
— A sua mamã está triste. Ontem só lhe ligou uma vez.
Só uma vez… Uma vez de quarenta minutos a ouvir queixumes da cor da urina do pai, das batatas que não crescem, da namorada inexistente, do lindo gato, das obscenidades da televisão…
— Pois… — limita-se a responder.
— O cágado morreu. Talvez lhe devesse comprar outro, a pobre ficou muito cabisbaixa.
Abrir a porta do carro. Ao entrar, gritar:
— Dona Amélia, veja lá se fica constipada! Volte para dentro e feche a janelita, sim? Passe um bom dia.
— Pois é… Divirta-se! Que idade linda que tem! Ainda me lembro dos meus trinta aninhos… Já tinha quatro filhos! Quando é que dá um netinho à sua mãe?
— Qualquer dia. Estou atrasado. Tenho mesmo que ir!
— Ah pois está! Olhe que a idade não perdoa! Despache-se então!
Trocadilhos incómodos. A Dona Amélia conseguia ser, de facto, bastante inconveniente. Todas as manhãs ouvia comentários que o deprimiam ainda mais. Por que é que a velha não acordava mais tarde?
Três tentativas falhadas para a ignição pegar. O seu lema: “ À quarta é de vez!” O ruído ensurdecedor do motor a trabalhar que atordoa o ar, o fumo do escape que contribui para a poluição do ambiente, o efeito de estufa, o aquecimento global, o degelo. Sim, ele era um tanto obcecado. Preocupado com o futuro da Humanidade, com as gerações futuras, com o desenvolvimento sustentável, por que não ir de bicicleta? Um problema no joelho. E de autocarro? Como se algum parasse naquele fim de mundo. Talvez a pé? Gargalhada sonora.
continua (?)