sexta-feira, 28 de março de 2008

Amanhã

Um rotineiro acordar, apressado, cansado. Uma habitual manhã, trivial, desmotivante, estupidamente aborrecida. Mais uma tarde como todas as outras, o prolongamento da melancólica e arrastada manhã. Anoitece solitário, triste, sombrio. A noite agitada, ansiosa, preocupada. Um sonho acordado.

Como fora possível atingir aquele ponto? Até força para reflectir faltava. Sentia um vazio insuportável.

O rotineiro acordar: sete e quarenta e sete. “ Já?” O seu primeiro pensamento pela manhã. Segue-se o banho quente, que tudo compõe, excepto o instalado estado de espírito depressivo. Vestir algo que sai sempre terrivelmente mal conjugado. Passa ao café forte, amargo. Por vezes uma bolacha, uma maçã. Oito e um quarto. “A chave?” Enchutar o gato do sofá, revirar almofadas. “A chave?!” O bolso! Correr para a porta, procurar a chave correcta, deixar cair os papéis desorganizados e atrasados. Assistir ao gato surgir, pisar tudo. “ Chut! Chut!” Gato ridículo, nunca gostara dele. Gordo de mais, excessivamente preguiçoso, matreiro, infiel, interesseiro. Como se ver livre da prenda que a mãe lhe oferecera? "Para não te sentires tão sozinho!" Sem dúvida, um destino errante.

O pico alto da manhã, o momento mais radioso: chegar ao velho carro de quinze anos, branco e deslavado (até dinheiro para a pintura faltava), evitar olhar para o espelho inundado de fita adesiva amarela. Malditos putos! “Para a próxima quem lhes atira um pedregulho sou”…

— Ora muito bom dia!

Sim, mais um belo dia — pensa sarcasticamente.

— Olá! Adeus!

— O seu vidro está partido.

Todas as santas manhãs ouvir a Dona Amélia, da janela da sua velha casa, gritar algo desnecessariamente irritante.

— Acontece. — Um sorriso seco.

— A sua mamã está triste. Ontem só lhe ligou uma vez.

Só uma vez… Uma vez de quarenta minutos a ouvir queixumes da cor da urina do pai, das batatas que não crescem, da namorada inexistente, do lindo gato, das obscenidades da televisão…

— Pois… — limita-se a responder.

— O cágado morreu. Talvez lhe devesse comprar outro, a pobre ficou muito cabisbaixa.

Abrir a porta do carro. Ao entrar, gritar:

— Dona Amélia, veja lá se fica constipada! Volte para dentro e feche a janelita, sim? Passe um bom dia.

— Pois é… Divirta-se! Que idade linda que tem! Ainda me lembro dos meus trinta aninhos… Já tinha quatro filhos! Quando é que dá um netinho à sua mãe?

— Qualquer dia. Estou atrasado. Tenho mesmo que ir!

— Ah pois está! Olhe que a idade não perdoa! Despache-se então!

Trocadilhos incómodos. A Dona Amélia conseguia ser, de facto, bastante inconveniente. Todas as manhãs ouvia comentários que o deprimiam ainda mais. Por que é que a velha não acordava mais tarde?

Três tentativas falhadas para a ignição pegar. O seu lema: “ À quarta é de vez!” O ruído ensurdecedor do motor a trabalhar que atordoa o ar, o fumo do escape que contribui para a poluição do ambiente, o efeito de estufa, o aquecimento global, o degelo. Sim, ele era um tanto obcecado. Preocupado com o futuro da Humanidade, com as gerações futuras, com o desenvolvimento sustentável, por que não ir de bicicleta? Um problema no joelho. E de autocarro? Como se algum parasse naquele fim de mundo. Talvez a pé? Gargalhada sonora.




continua (?)

3 comentários:

IM disse...

Belo texto!!! Não te conhecia TAL vertente de escritora...já sabia que escrevias bem, que tinhas um a fantástica cabecinha, mas não sabia que escrevias ASSIM!!!!! Boa!!! Eu quero a continuação, claro!!!!

Ana Oliveira disse...

Sim...estamos à espera!

luis nuno barbosa disse...

continua pois! nao pode parar aqui!

bem, o blog está muito bom!

gosto da maneira como escreves!